Os modelos e padrões de produção e de consumo alimentar são
uma matéria fulcral para quem age, não apenas sob o princípio da sustentabilidade,
como na procura de gerar justiça ambiental e social. Quando falamos de
desperdício alimentar, falamos de alimentos destinados ao consumo humano que
acabaram por ser inutilizados em quantidade ou em qualidade. Ou seja,
esbanjam-se recursos naturais para produzir bens alimentares que depois acabam
no lixo, gerando graves impactos ambientais e económicos ao longo das
diferentes fases da cadeia alimentar.
Do ponto de vista social é angustiante que se deitem
literalmente fora um conjunto significativo de alimentos que poderiam
contribuir para satisfazer necessidades básicas alimentares de uma parte da
população, perpetuando o empobrecimento, em vez da satisfação das mais
elementares necessidades de subsistência.
Esse desperdício verifica-se desde a produção ao
processamento, do armazenamento ao embalamento, do transporte aos pontos de
venda para consumo. E quanto mais longa for essa cadeia, maior é a
probabilidade de desperdício. É preciso perceber, com rigor, as causas que
geram esta situação e criar as condições e metas para pôr fim ao problema, envolvendo
a sociedade e todos os agentes implicados.
É preciso que o combate ao desperdício alimentar inclua um
programa de acção nacional que congregue iniciativas municipais já em curso,
como no caso de Lisboa, com ampla participação dos cidadãos e dos agentes
envolvidos. É preciso consciencializar os consumidores sobre a diferença entre
data limite e data preferencial de consumo. Para além da redução e eliminação do
desperdício alimentar, é urgente que se solucionem os problemas estruturais de
pobreza, garantindo formas dignas de subsistência das famílias portuguesas.
É necessário sensibilizar para a disponibilização de
embalagens mais reduzidas, que se adequem às dimensões dos agregados
familiares, bem como promover o princípio da produção e consumo locais,
reduzindo fases da cadeia de distribuição.
Há exactamente um ano (3/6/2015), por proposta do GP de Os
Verdes, Portugal declarou o ano de 2016 como o ano nacional contra o
desperdício alimentar, mas a grande maioria dos princípios aprovados nunca
entrou em prática. Entretanto, já no final de 2014, Lisboa criara e reunira
pela primeira vez o Comissariado Municipal de Combate ao Desperdício Alimentar.
Este Comissariado estabeleceu um conjunto inicial de
objectivos, tais como criar uma rede citadina de forma sustentável, com a
finalidade de optimizar a recolha do desperdício alimentar em tempo útil, alargar
a distribuição de excedentes alimentares, recolocando-os nos núcleos familiares,
através de uma rede de organizações de voluntariado, que deveriam garantir a
distribuição de bens alimentares para doação, em condições de qualidade,
higiene e segurança. Estabeleceu parcerias com associações de voluntariado e
subscreveram-se protocolos com 23 das 24 Freguesias de Lisboa.
Estas comprometeram-se a participar com um conjunto de
iniciativas locais.
1º, criando um núcleo de agentes, composto pelas diversas
instituições que actuem no território da sua Freguesia, com condições para
oferecer uma resposta alimentar aos residentes.
2º, promovendo, colaborando e facilitando a articulação com
as diversas instituições, de modo a optimizar as doações de excedentes
alimentares e a sua canalização para a população necessitada.
3º, articulando com o Município e com outros núcleos e
restantes instituições, por forma a garantir a qualidade e melhorar a resposta
no âmbito das áreas de intervenção do combate ao desperdício alimentar.
4º, contribuindo para um Observatório de Combate ao
Desperdício Alimentar.
5º, desenvolvendo, participando e apoiando localmente acções
de sensibilização de Combate ao Desperdício Alimentar.
Montada esta rede com voluntários, associações e
freguesias, previa-se inicialmente que o Comissariado fosse extinto até
Novembro de 2016. Acontece que, inesperadamente, este foi confrontado com
algumas recentes dificuldades por ultrapassar, equacionando-se agora o seu
eventual prolongamento até ao 1º trimestre de 2017.
Para Os Verdes, a questão que subsiste é: após o
encerramento do Comissariado, afinal, qual é a capacidade de resposta que a
rede local entretanto criada vai conseguir perpetuar se não lhe subsistir uma
estrutura colaborativa sólida que minimize o desperdício alimentar? Que
debilidades entretanto sentidas são essas e como as ultrapassar?
Primeiro, de acordo com o representante da FAO (Organização
das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) em Portugal, o preço do
que comemos está sujeito à oferta e à procura, pelo que, quando se deita comida
fora está-se a inflacionar os preços. Verifica-se que se produz em função do
lucro e não em função das carências reais das populações. Daí que deveriam ser
as necessidades dos consumidores a ditar as formas de produção e não o lucro
pelo lucro.
Em segundo lugar,
há que sensibilizar todos os intervenientes no processo, incluindo produtores,
distribuidores e consumidores, o que extravasa as competências do Comissariado.
Neste contexto, é fundamental que o Governo defina, com urgência, uma
estratégia nacional que configure não apenas um plano de intervenção, como de
educação para a sustentabilidade, tendo em vista a gestão eficiente dos
alimentos, ao logo da cadeia de produção e distribuição, orientando campanhas
de sensibilização junto dos agentes económicos, dos consumidores e mesmo nas
escolas, para se evitar o desperdício alimentar.
Em terceiro lugar, algumas freguesias queixaram-se,
recentemente, da deficiente qualidade alimentar dos produtos em doação, pois
chegam aos seus destinatários já estragados. Assim, é fulcral não apenas
explicar as diferenças entre
“consumir antes de” e “consumir de preferência até”, como
as sobras de comida terem de cumprir regras de conservação. De acordo com a
ASAE, existe mau manuseio e falta de refrigeração, pelo que, para assegurar que
os géneros alimentícios são de qualidade, eles têm de passar a contar com um
selo de qualidade.
Em quarto lugar, talvez inesperadamente, uma ou outra freguesia deixou
de apoiar as equipas de voluntários, rescindindo a cedência de espaços para a
recolha e distribuição dos alimentos desperdiçados. Deslocalizadas, estas
equipas voltaram a andar com ‘a casa às costas’, montando e desmontando estruturas
de apoio à distribuição dos alimentos, o que faz que “com este calor e ao ar
livre, o pão endurece muito mais facilmente e não é consumível” e outros
produtos se tornem perecíveis, comprometendo a qualidade dos alimentos. São
situações nas quais o Comissariado pouco pode intervir, mas que poderão ser
ultrapassadas com os devidos apoios governamentais.
Em quinto lugar, há que reconhecer que
os produtos alimentícios não podem ser distribuídos independentemente de
situações alergológicas e dos casos clínicos dos consumidores, como hipertensão,
diabetes, etc., pelo que há que garantir níveis de saúde pública, por meio do
acompanhamento clínico dos destinatários dos produtos alimentares.
Em suma, é fundamental esclarecer que,
quando estamos a falar de combate ao desperdício alimentar, é preciso que se
tenha consciência de que não estamos a falar de meras medidas
assistencialistas. Combater o desperdício alimentar não é dar as sobras aos
pobres, é antes fazer com que todas as pessoas tenham condições de acesso aos
bens alimentares que já existem no mercado.
Mas é também o alertar para regras
quanto à retirada de determinados alimentos dos circuitos comerciais, como
frutas e produtos hortícolas, onde indevidamente se associam a qualidade do
produto ao seu aspecto, dimensão e calibragem, critério que não tem
rigorosamente nada que ver com qualidade e que contribui extraordinariamente
para grandes lógicas de desperdício alimentar, que têm de ser combatidas.
Felizmente, já existem circuitos de oferta da denominada ‘fruta feia’.
Falta, enfim, encontrar respostas
sustentáveis para a inevitabilidade da integração de pessoas e famílias em
condições de evidente debilidade clínica e de fragilidade dos seus níveis
social e económico.
É neste sentido que Os Verdes apresentam a sua
recomendação, para que o trabalho inicial coordenado pelo Comissariado não se
fique pelo caminho após a sua extinção. Falta agora a sua integração numa rede
de apoios de âmbito nacional que lhe dê continuidade.
J. L. Sobreda
Antunes
Grupo Municipal de Os Verdes
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