Goethe-Institut, Lisboa, 26
de Outubro de 2018
Em primeiro
lugar, cumpre-nos agradecer o aliciante convite para contribuirmos para o
debate sobre a ‘Nova Fronteira da Especulação Imobiliária’ na Colina de
Santana. Questionemos, no entanto, se será que representa mesmo um ‘novo’
processo de especulação.
Ao longo de
várias décadas, os antigos Hospitais Civis de Lisboa, designados e configurados
como um grupo hospitalar, foram objecto de diversas alterações organizativas e
regulamentares, tendo passado a integrar o Centro Hospitalar de Lisboa Central,
E.P.E., nos termos do D-Lei nº 50-A/2007, de 28 de Fevereiro e do D-Lei nº
44/2012, de 23 de Fevereiro.
As unidades
hospitalares da Colina de Santana têm constituído, apenas, mais uma das facetas
do extenso património do Estado, na cidade de Lisboa, objecto de especulação,
através da empresa Estamo, criada em 1993, quando Cavaco Silva chefiava o
Governo. Com que objectivos? Primeiro para extinguir equipamentos do Estado e
lançar os respectivos terrenos e construções nos meandros do negócio imobiliário,
depois, e principalmente, para promover ficcionalmente a redução do défice. Com
efeito, especular significa procurar vantagens próprias à custa de outrem.
Pelo D-Lei nº
185/2002, já o Governo de Durão Barroso / Manuela Ferreira Leite definira os
princípios e os instrumentos para o estabelecimento de parcerias em saúde, em
regime de gestão e financiamento privados, estipulando, no seu art. 7º, que os
activos patrimoniais hospitalares poderiam envolver “a alienação de património
do Estado ou de outras entidades públicas”. Eis um bem antigo exemplo das
famosas parcerias público privadas na área da Saúde.
De seguida, e durante
anos, sucessivas Leis do Orçamento de Estado foram definindo critérios e consignando especificações
para a alienação e oneração de imóveis
envolvendo como intermediária, pelo menos até 2008, a empresa Sagestamo -
Sociedade Gestora de Participações Sociais Imobiliárias, S. A., criada pelo Decreto-Lei
nº 209/2000, de 2 de Setembro.
Desde então, todos os Orçamento de
Estado estipulavam a “alienação de bens imóveis do Estado e dos organismos
públicos às empresas (…) subsidiárias da Sagestamo”, processando-se por ajuste
directo. Enquanto à Sagestamo, do grupo Parpública, lhe competia gerir a
carteira de imóveis, a sua subsidiária Estamo era quem tinha competência para a
sua venda. Por sua vez a Estamo ganhou maior fôlego,
em 2007, pela fusão com a empresa Locagest, durante a vigência do primeiro Governo
de José Sócrates.
Um breve
parêntese apenas para exemplificar, com números recentes, o que valem estas
empresas. Só o grupo Parpública registou no primeiro semestre de 2018 um lucro
consolidado de 48,7 milhões €, o que representa uma evolução bastante positiva
quanto comparado com o resultado de 7 milhões € obtido no primeiro semestre do
ano anterior.
Foi também em
2007, com o Decreto-Lei nº 280/2007, que se estabeleceram “as disposições
gerais e comuns sobre a gestão dos bens imóveis dos domínios públicos do
Estado”. Foi com base neste diploma e na subdelegação de competências
dos Ministros das Finanças e da Saúde nos seus Secretários de Estado, pelo
Despacho nº 22.453/2009, que foi confirmada a autorização da celebração de
contratos de gestão imobiliária e respectiva afectação dos valores da alienação
dos prédios de 4 hospitais da Colina de Santana.
Esta decisão surge
consubstanciada na “Lista de alienação de imóveis do Estado em 2009”, onde se identifica
cada processo patrimonial com a designação de vários imóveis a alienar,
incluindo, nomeadamente, os prédios urbanos dos Hospitais dos Capuchos, São
José, Miguel Bombarda e de Santa Marta.
À custa do anunciado encerramento de
serviços públicos essenciais, o Estado encaixava um
total de 111.440.250,00 €. Como? Com a Estamo, empresa do Ministério das
Finanças, a ‘adquirir’ aqueles Hospitais ao Ministério da Saúde e encomendando
discretamente, sem concurso público, os projectos para os terrenos libertados
pela destruição dos referidos Hospitais.
O objectivo imediato residiu em a Estamo
pagar ao Estado o valor dos edifícios a alienar e o Estado arrecadar receita
para ficcionar a redução do défice. Pura engenharia financeira em que o Estado
vendeu ao próprio Estado, dissimulando, assim, as contas públicas. Os
hospitais, incluindo os da Colina de Santana, constituíram, como se comprova,
um óptimo balão de ensaio para esta camuflagem financeira.
E para que não restassem dúvidas, a
proposta contida no “Relatório final do Grupo Técnico para a Reforma
Hospitalar”, datado de Novembro de 2011, esclarecia que se tinha em vista “uma
redução no financiamento das unidades hospitalares (só para 2012) de cerca de
358 milhões €, em linha com a redução do orçamento da saúde para os Hospitais”
e “uma redução potencial da estrutura de custos das unidades hospitalares
estimada em cerca de (mais) 476 milhões €”, num total de 834 milhões €. Estes “objectivos
(tinham) como corolário atingir uma redução (…) dos custos operacionais dos
hospitais” em pelo menos 15%. Ou seja, mera operação de agiotagem financeira à
custa da nossa saúde!
De tal modo que, em 2012, o próprio
Tribunal de Contas procedeu a uma auditoria às alienações de imóveis do
património público estatal (no valor de 1.381 milhões €) efetuadas no último
sexénio a favor de empresas públicas, tendo concluído (cito) pela “necessidade
de uma aplicação rigorosa da lei e da reforma dos procedimentos insuficientes e
inapropriados que se generalizaram nessas vendas”.
Este pouco divulgado Relatório nº 41, de
Dezembro de 2012 de ‘Auditoria à alienação de imóveis do Estado a Empresas
Públicas’ concluiu ainda que (cito de novo) “ser deficiente e inapropriada -
ou, mesmo, inexistente - a fundamentação das decisões de alienação de imóveis,
face ao exigido pelo regime jurídico do património imobiliário público”.
Conferir
www.tcontas.pt/pt/actos/rel_auditoria/2012/2s/audit-dgtc-rel041-2012-2s.pdf
Ora, os
contratos-promessa de compra e venda previam a ocupação dos edifícios, sem o
pagamento de qualquer compensação, mas só até 31 de Dezembro de 2010. Pelo que,
a partir daquela data, se os edifícios continuassem ocupados sem ter sido
celebrado contrato de arrendamento, o Estado obrigava-se a pagar à Estamo uma
indemnização mensal correspondente a 6,5%, sobre 12 meses, calculada sobre o
preço do imóvel, actualizado anualmente, de acordo com o índice de preços no
consumidor estabelecido pelo INE, até à sua entrega, livre e devoluta. Já lá
vão 8 anos!
E qual tem sido o papel da CML em todo este
processo? Primeiro deveras interessadíssima, embora hoje bem mais na
expectativa, pois apenas quando pressionada pelos debates públicos,
nomeadamente, na Assembleia Municipal de Lisboa, e o reiterado protesto de
cidadãos e profissionais da saúde, pareceu despertar da sua letargia.
Recordemos que os citados Orçamentos de
Estado até atribuíam “aos municípios da localização dos imóveis, o direito de
preferência nas alienações realizadas através de hasta pública”, ou seja, a
possibilidade de novas receitas complementares para a CML.
No entanto, não nos podemos esquecer que
foi a própria vereação PS quem, logo em Abril de 2009, promoveu a divulgação dos
projectos da Sagestamo, datados de Novembro de 2007, para os “Terrenos,
Hospitais e Instalações Militares com desafectação prevista em Lisboa”.
E seria também a própria CML, antevendo futuras
receitas, fruto dos projectos imobiliários e de novas taxas de IMI, quem
acabaria por promover vários loteamentos para a Colina de Santana. E porquê? Porque a CML via ali (cito) “o interesse excepcional destes
projectos e as mais-valias” que poderiam trazer para a cidade, tendo procedido
à publicitação dos Pedidos de Informação Prévia (PIP) dos promotores privados.
De imediato surgiram (em Julho de 2013) projectos
e maquetas, quando a Estamo, em conjunto com o representante da CML e os
arquitectos responsáveis pelos vários projectos apresentaram, em sessão pública
na Ordem dos Arquitectos, os referidos planos de arquitectura correspondentes aos
4 PIP, para aferir a viabilidade da realização das operações de loteamento.
O projecto
urbano previa a conversão dos 4 hospitais em espaços com valências hoteleiras,
de habitação, comércio, estacionamento e lazer. O valor estimado do investimento
para realizar o projecto com novas construções, reabilitação e arranjos
exteriores estava avaliado, no mínimo, em 250 milhões €.
Este negócio deixaria
a Saúde e os residentes do centro de Lisboa sujeitos a um genuíno processo de
despejo. A alternativa oferecida pelo Governo era a transferência destas
unidades, com a perda de mais de 900 camas, para um novo hospital em Chelas, com
custos previstos superiores a 600 milhões €.
E eis senão
quando o sr. vereador do Urbanismo (Manuel Salgado) anunciou que os PIP estavam
suspensos até ser aprovado um Programa de Salvaguarda e Regeneração Urbana,
envolvendo a CML, a Estamo (claro) e a Universidade de Lisboa. E o então sr.
presidente da CML (e actual 1º Ministro) afirmava que o fecho de hospitais na
Colina de Santana era uma “oportunidade de regeneração”, entenda-se, de negócio
imobiliário.
Afinal, de que
lado tem estado a CML? Da parte da AML ainda foi promovido, no início de 2014,
um debate temático em 4 sessões. Pelo que é urgente que o Município e o Governo
reconsiderem e revejam os projectos no respeito pelas valências que hoje
ameaçam destruir, revertendo todo o processo.
Vemos principalmente
nestes projectos urbanos uma oportunidade de negócio financeiro para o Governo
e para a CML de mãos dadas com os privados. Consideramos inadiável a
salvaguarda e o respeito pelas unidades histórico-artísticas na sua componente
de saúde, bem como de habitação condigna, que devem prevalecer acima dos
interesses especulativos e de acções de pretensa modernização urbanística.
O que está em
curso são afinal ‘velhos’ processos ditos de valorização imobiliária,
acompanhados da deslocação dos moradores com menor poder económico e da sua substituição
por residentes com maior capacidade de pagar elevados impostos ao Estado e à
CML.
Que não haja ilusões. De ‘novo’, esta
fronteira de especulação imobiliária não tem nada! Ao longo de todo este
processo, constata-se que para os Governos de PS, PSD e CDS os números tem sido
apenas um ‘fim’. Para os cidadãos significaria o ‘fim da linha’ no direito pelo
acesso à Saúde e à Habitação consignados na Constituição da República
Portuguesa. Os munícipes, os utentes e os trabalhadores não precisam deste projecto
da Estamo para a Colina de Santana; não querem mais especulação imobiliária; os
cidadãos exigem e lutam pelo SNS, com melhores cuidados de saúde, e defendem o direito
a uma habitação digna.
Em coerência com os direitos consagrados na Constituição da República Portuguesa, repudiamos medidas que conduzam à especulação imobiliária, que representem a expulsão de moradores e um
prejuízo para a cidade ou
que não contribuam para a reabilitação da habitação e
das unidades de saúde da Colina de Santana. Porque, para “Os Verdes”, ‘Morar em Lisboa’, ou em qualquer outro ponto do
País, é um desígnio constitucional!
J. L. Sobreda Antunes
Partido
Ecologista “Os
Verdes”