Assembleia Municipal de Lisboa, 11 de Março de 2014
“Projectos urbano e financeiro da Colina de Santana”
Em 1918, o Decreto nº 4563, de 12 de Julho, procedeu a uma reorganização dos Hospitais Civis de Lisboa, reconhecendo expressamente a sua natureza jurídica. Desde essa data, e ao longo de várias décadas, os Hospitais Civis de Lisboa, designados e configurados como um grupo hospitalar, foram objecto de diversas alterações organizativas e regulamentares.
Estes estabelecimentos hospitalares, que ao longo dos anos se consideraram fazerem parte da pessoa colectiva Hospitais Civis de Lisboa, passariam a integrar o Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E., nos termos do D-Lei nº 50-A/2007, de 28 de Fevereiro e do D-Lei nº 44/2012, de 23 de Fevereiro.
Localizadas na vilipendiada Colina de Santana, estas unidades apenas têm sido mais uma das facetas do extenso património do Estado, na cidade de Lisboa, que tem sido objecto de especulação, através da empresa Estamo, criada em 1993, quando Cavaco Silva chefiava o Governo. Com que objectivos? Primeiro para extinguir equipamentos do Estado e lançar os respectivos terrenos e construções nos meandros da especulação imobiliária, depois, e principalmente, para promover ficcionalmente a redução do défice.
Com efeito, pelo D-Lei nº 185/2002, já o Governo de Durão Barroso / Manuela Ferreira Leite, definira os princípios e os instrumentos para o estabelecimento de parcerias em saúde, em regime de gestão e financiamento privados, estipulando, no seu art. 7º, que os activos patrimoniais hospitalares poderiam envolver «a alienação de património do Estado ou de outras entidades públicas».
Apesar de todas as transformações que ao longo dos anos se têm vindo a verificar no âmbito da gestão e organização hospitalar, constata-se que nunca se operou legalmente a extinção da pessoa colectiva Hospitais Civis de Lisboa, subsistindo, ainda, na sua esfera jurídica, património cuja gestão corrente vinha sendo assegurada pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central. Daí que o actual Governo tenha dotado esta entidade de um título habilitador para a prática de determinados actos de administração.
Com efeito, o Governo esqueceu-se do enquadramento jurídico do Centro Hospitalar de Lisboa Central, tendo sido necessário aguardar por 2013.
Ou seja, foi preciso aguardar pelo D-Lei nº 27/2013 para se proceder à extinção dos Hospitais Civis de Lisboa, e clarificar no seu art. 2º, que «o Centro Hospitalar de Lisboa Central sucede em todos os direitos e obrigações dos Hospitais Civis de Lisboa, assume todas as posições jurídicas destes hospitais, independentemente de quaisquer formalidades». Quanto ao património que subsista na titularidade dos Hospitais Civis de Lisboa, este foi transferido para o Centro Hospitalar de Lisboa Central, constituindo este diploma título bastante, para todos os efeitos legais, designadamente os de registo patrimonial.
Ora, durante anos, sucessivas Leis do Orçamento de Estado foram definindo critérios e consignando especificações para a alienação e oneração de imóveis envolvendo como intermediária, pelo menos até 2008, a empresa Sagestamo - Sociedade Gestora de Participações Sociais Imobiliárias, S. A., criada pelo Decreto-Lei nº 209/2000, de 2 de Setembro.
Todos estes Orçamento de Estado estipulavam que «a alienação e oneração de imóveis pertencentes ao Estado ou aos organismos públicos (…) depende de autorização do ministro responsável pela área das finanças, que fixa, mediante despacho, a afectação do produto da alienação ou da oneração». Estas «alienações e onerações de imóveis são sempre onerosas, tendo como referência o valor apurado em avaliação promovida pelo Ministério das Finanças».
E esta «alienação de bens imóveis do Estado e dos organismos públicos (era efectuada) às empresas (…) subsidiárias da Sagestamo», processando-se por ajuste directo. Enquanto à Sagestamo, do grupo Parpública, lhe compete gerir a carteira de imóveis, a sua subsidiária Estamo é quem tem competência para a sua venda. Por sua vez a Estamo ganhou maior fôlego, em 2007, pela fusão com a empresa Locagest, durante a vigência do primeiro Governo de José Sócrates.
Foi também em 2007, com o Decreto-Lei nº 280/2007, que se estabeleceram “as disposições gerais e comuns sobre a gestão dos bens imóveis dos domínios públicos do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais”. O seu artigo 115º estipula que, no início de cada ano civil, o Governo deve apresentar à Assembleia da República um “relatório sobre a aquisição, oneração e alienação de bens imóveis do domínio privado do Estado e dos institutos públicos”.
Com base neste diploma e na subdelegação de competências dos Ministros das Finanças e da Saúde nos seus Secretários de Estado, seria pelo Despacho nº 22453/2009 que estes Secretários de Estado acabariam por confirmar a autorização da celebração de contratos de gestão imobiliária e respectiva afectação do produto da alienação dos prédios dos 4 hospitais da Colina de Santana.
Esta determinação aparece consubstanciada na “Lista de alienação de imóveis do Estado em 2009”, onde se identifica cada processo patrimonial com a designação de vários imóveis a alienar, incluindo, nomeadamente, os prédios urbanos dos Hospitais dos Capuchos, São José, Miguel Bombarda e de Santa Marta.
À custa do anunciado encerramento de serviços públicos essenciais o Estado encaixava um total de 11.440.250,00 €. Como? Com a Estamo, empresa do Ministério das Finanças, a ‘adquirir’ aqueles Hospitais ao Ministério da Saúde e encomendando discretamente, sem concurso público, os projectos para os terrenos libertados pela destruição dos referidos Hospitais.
O objectivo imediato residiu em a Estamo pagar ao Estado o valor dos edifícios a alienar e o Estado arrecadar receita para ficcionar a redução do défice. Pura engenharia financeira em que o Estado vendeu ao próprio Estado, dissimulando, assim, as contas públicas. Os hospitais, incluindo os da Colina de Santana, constituíram, como se comprova, um óptimo balão de ensaio para esta camuflagem.
E para que não restassem dúvidas, a proposta contida no “Relatório final do Grupo Técnico para a Reforma Hospitalar”, datado de Novembro de 2011, esclarecia que se tinha em vista «uma redução no financiamento das unidades hospitalares (só para 2012) de cerca de 358 milhões de euros, em linha com a redução do orçamento da saúde para os Hospitais», e, paralelamente, «uma redução potencial da estrutura de custos das unidades hospitalares estimada em cerca de (mais) 476 milhões de euros», num total de 834 milhões. Estes «objectivos têm como corolário atingir uma redução da despesa pública (… e) dos custos operacionais dos hospitais» em pelo menos 15%.
Apesar de tudo, a dívida do Estado à Estamo continua por saldar. Até ao início de 2014, o Ministério da Saúde deve à Estamo cerca de 15 milhões de euros de indemnizações pela ocupação dos imóveis dos hospitais de Santa Marta, São José, Capuchos e do ex-sanatório da Ajuda», estando o seu pagamento ainda a ser negociado.
É caso para dizer: foram-se os anéis (os hospitais) e os dedos (os juros de indemnização) com eles.
De facto, os contratos-promessa de compra e venda previam a ocupação dos edifícios, sem o pagamento de qualquer compensação, mas só até 31 de Dezembro de 2010. Pelo que, a partir daquela data, se os edifícios continuassem ocupados sem ter sido celebrado contrato de arrendamento, o Estado obrigava-se a pagar à Estamo uma indemnização mensal correspondente a 6,5%, sobre 12 meses, calculada sobre o preço do imóvel, actualizado anualmente, de acordo com o índice de preços no consumidor estabelecido pelo INE, até à sua entrega, livre e devoluta.
E qual tem sido o papel da CML em todo este processo? Primeiro deveras interessadíssima e hoje mais na expectativa, pois apenas agora, pressionada pelo debate público e o reiterado protesto de cidadãos e profissionais da saúde, parece despertar da sua letargia.
Recordemos que os citados Orçamentos de Estado até atribuíam «aos municípios da localização dos imóveis, por razões de interesse público, o direito de preferência nas alienações realizadas através de hasta pública», enquanto «o remanescente da afectação (ministerial) do produto da alienação e oneração de imóveis constitui(ria) receita (directa) do Estado».
No entanto, não nos podemos esquecer que foi a própria vereação quem, logo em Abril de 2009, veio às Comissões desta AML divulgar os projectos da Sagestamo, datados de Novembro de 2007, para os “Terrenos, Hospitais e Instalações Militares com desafectação prevista em Lisboa”.
E seria também a própria CML, antevendo futuras receitas, fruto dos projectos imobiliários e de novas taxas de IMI, quem acabaria por promover vários loteamentos para a Colina de Santana. A CML via ali «o interesse excepcional destes projectos e as mais-valias que poderão trazer para a cidade», pelo que procedeu à publicitação dos Pedidos de Informação Prévia (PIPs) e sua discussão em Julho de 2013.
De imediato surgiram, em Julho de 2013, projectos e maquetas pagos, quando a Estamo, em conjunto com o representante da CML e os arquitectos responsáveis dos vários projectos apresentaram, em sessão pública na Ordem dos Arquitectos, os referidos projectos de arquitectura correspondentes aos 4 PIPs, para aferir a viabilidade da realização das operações de loteamento.
O projecto urbano prevê a conversão dos 4 hospitais em espaços com valências hoteleiras, de habitação, comércio, estacionamento e lazer. O valor estimado do investimento para realizar o projecto com novas construções, reabilitação e arranjos exteriores está avaliado, no mínimo, em 250 milhões de euros.
O projecto deixa a Saúde do centro de Lisboa sujeita a um genuíno processo de despejo. A alternativa oferecida pelo Governo é a transferência destas unidades, com a perda de mais de 900 camas, para um novo hospital em Chelas, caso venha a ser construído.
E eis senão quando esta Casa da Cidadania estimulou o debate público. Só então o sr. vereador Manuel Salgado anunciou que os PIPs “estão suspensos” até que seja aprovado um Programa de Salvaguarda e Regeneração Urbana, envolvendo a CML, a Estamo e a Universidade de Lisboa. E o sr. presidente da CML bem tem vindo a afirmar que o fecho de hospitais na Colina de Santana é uma “oportunidade de regeneração”. Afinal, de que lado está a CML? É urgente que o município e o Governo reconsiderem e revejam os projectos no respeito pelas valências que hoje ameaçam destruir.
O GM de “Os Verdes” vê principalmente nestes projectos urbanos uma oportunidade de negócio financeiro para o Governo e os privados. Como alertam outros analistas, é inevitável a sua salvaguarda e o respeito pelas unidades histórico-artísticas e a componente de saúde que devem prevalecer acima dos interesses especulativos e de acções de pretensa modernização urbanística.
Ao longo de todo este processo, constata-se que para o Governo os números tem sido apenas um ‘fim’. Para os cidadãos significaria o ‘fim da linha’ no direito pelo acesso à Saúde consignada na Constituição da República Portuguesa.
J. L. Sobreda Antunes
Grupo Municipal de “Os Verdes”