Faleceu a D. Amélia. Nome fictício? Nome real? A sua graça era desconhecida por quem com ela coabitava ou de quem por ela passava. E talvez mesmo já por ela própria. O óbito da idosa não foi noticiado por nenhum órgão de comunicação social ou qualquer revista de futilidades. Já nem a metálica maior ‘árvore’ natalícia do mundo lhe fazia companhia. Nem chegou a ver o maior enamorado coração de plástico da Europa flutuando junto a D. José. Perante estes dois marcos publicitários, a D. Amélia era, acima de toda a ‘modernidade’, um ser humano.
Data do óbito: perfaz exactamente hoje três semanas.
Idade: desconhecida.
Familiares: ignora-se.
Última morada: as lajes frias das arcadas do Terreiro do Paço, bem juntinho ao Ministério das Finanças, durante mais de dez longos anos.
Declaração de rendimentos: os dejectos urbanos abandonados por quem passa, uma esteira de cartão e um cobertor cedido pelo SOS nocturno.
Última refeição: talvez um resto de sopa ou uma laranja esquecida no lixo.
O alarme foi dado aos primeiros raios matinais deste frio Inverno. Naquela madrugada, os inúmeros vizinhos de várias nacionalidades já não detectavam o seu trémulo pestanejar. Foi transportada de urgência para o hospital, enquanto a vizinhança lhe acondicionava os ‘pertences’ sob a majestosa soleira de uma das portas do edifício pombalino.
Causa do óbito: complicações cardíacas na sequência de hipotermia nocturna.
O boletim meteorológico avisara: “caso as condições meteorológicas não se alterem prevê-se para Lisboa, 10º C máxima / 4º C mínima no sábado, e 8º C máxima / 7º C mínima, no domingo”.
Os serviços sociais da Câmara bem lançaram dias antes, em conferência de imprensa, o “Plano de Contingência para a População de Rua Perante as Vagas de Frio”. Uma campanha que a ela já não terá chegado a tempo. Nesse último fim-de-semana de Janeiro, o apoio camarário aos sem-abrigo não previa “grandes alterações, apesar da anunciada vaga de frio para os próximos dias”.
Como se transcrevia na parte I deste artigo, debaixo das arcadas dos Ministérios dormiam cerca de 30 pessoas. Hoje seria menos uma. Porém, a sua ‘não-assoalhada’ já foi ocupada por outro conhecido sem-abrigo, acompanhado pelos seus cães brancos. Como naquele famoso fado, diria o filho para a mãe: “debaixo daquela arcada passava-se a noite bem”. Triste desdita a do fado dos sem-abrigo da noite de Lisboa.
Genérico final: se alguém disser que os nomes e os factos aqui relatados são fictícios, é falso; este artigo tem por base um caso real entre os sem-abrigo de Lisboa, bem debaixo daquela fria arcada.
1 comentário:
É uma vergonha Lisoa com sem abrigos sem conta! A CML neste caso
> especifico tem um caso em mãos, mas como não tem mãos nem cabeças
> pelos vistos pois estão a rolar de tanta vigarice, como podiam ter
> olhos para ver esta situação que é particular só das maiores urbes
> nacionais mas julgo que principalmene em Lisboa! «Os Verdes» podiam
> organizar algo para ajudar a minorar este flagelo, como por exemplo
> recolher agazalhos e tendas de campismo e levar os sem abrigo a
> acampar nos jardins em Lisboa, e depois ficar à espera que a polícia
> os venha despejar, e então pergunte-se: se tivessem ao relento debaixo
> de arcadas e de montras e portas por essa Lisboa já não eram
> despejados? Fica a ideia. A CML tem de criar abrigos decentes onde
> esta pobre gente, muitos levados a esta situação fruto de desemprego,
> queiram ficar a dormir! Salas pequenas sem muitas camas com alguma
> privacidade, com armários com cadeados para poderem guardar os seus
> parcos pertences. Com sanitários decentes, com trabalhadores
> suficientes para os manterem limpos com dignidade apesar de saber-se
> dificil inculcar regras a estas pessoas que já perderam o seu
> amor-próprio, mas dar-lhes algumas condições para poderem pensar ao
> menos em recomeçar.... Como? Mas devia-se tentar em nome da
> solidariedade e em nome de uma justiça que tarda em chegar! Só com uma
> «Revolução Socialista» lá iremos! Mas quando?
>
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