«Numa das ruas que atravesso a pé nos meus trajectos diários apareceu há tempos uma passadeira pintada de fresco. A passadeira era uma zebra daquelas onde não há semáforo e onde não há dúvidas quanto a quem tem prioridade: são mesmo os peões.
Aconteceu que a passadeira foi pintada de fresco e os carros começaram a parar para os peões passarem. Não era aquele habitual abrandar envergonhado para não dar parte de fraco enquanto os peões correm para se pôr a salvo. Os carros paravam mesmo e os peões passavam. Era prático.
À medida que o tempo passava, a tinta foi enegrecendo, o contraste foi-se tornando menos nítido entre as riscas brancas e pretas da zebra e aconteceu o inevitável. A lógica binária induzida pela passadeira pintada de fresco - pára, anda - foi substituída por uma lógica - de abranda às vezes, nem abranda, deixa passar um, mas não dois, as mulheres sim, os homens não - que traduzia em termos normativos os graus de cinzento do asfalto manchado.
Há muitas interpretações para o facto.
Pode-se pensar que os carros deixaram de obedecer à passadeira em virtude daquilo que os americanos chamam ‘plausible deniability’. (“Passadeira? Qual passadeira? Eu vi umas marcas muito sumidas, mas pensava que fossem de uma passadeira antiga que já nem existisse”). Pode-se pensar que alguns dos automobilistas não vejam mesmo as marcas. E pode-se pensar que outros não queiram ser alvo da chacota dos seus colegas automobilistas se pararem.
Mas a minha teoria é outra. Penso que a razão por que as pessoas param numa passadeira bem pintada, mas não numa passadeira suja e sumida, não é porque no segundo caso se possam safar facilmente sem sanção, mas sim porque reagem à norma pública, exactamente com o mesmo (des)respeito que essa norma pública manifesta por eles. A atitude não será desculpável…» 1
Aconteceu que a passadeira foi pintada de fresco e os carros começaram a parar para os peões passarem. Não era aquele habitual abrandar envergonhado para não dar parte de fraco enquanto os peões correm para se pôr a salvo. Os carros paravam mesmo e os peões passavam. Era prático.
À medida que o tempo passava, a tinta foi enegrecendo, o contraste foi-se tornando menos nítido entre as riscas brancas e pretas da zebra e aconteceu o inevitável. A lógica binária induzida pela passadeira pintada de fresco - pára, anda - foi substituída por uma lógica - de abranda às vezes, nem abranda, deixa passar um, mas não dois, as mulheres sim, os homens não - que traduzia em termos normativos os graus de cinzento do asfalto manchado.
Há muitas interpretações para o facto.
Pode-se pensar que os carros deixaram de obedecer à passadeira em virtude daquilo que os americanos chamam ‘plausible deniability’. (“Passadeira? Qual passadeira? Eu vi umas marcas muito sumidas, mas pensava que fossem de uma passadeira antiga que já nem existisse”). Pode-se pensar que alguns dos automobilistas não vejam mesmo as marcas. E pode-se pensar que outros não queiram ser alvo da chacota dos seus colegas automobilistas se pararem.
Mas a minha teoria é outra. Penso que a razão por que as pessoas param numa passadeira bem pintada, mas não numa passadeira suja e sumida, não é porque no segundo caso se possam safar facilmente sem sanção, mas sim porque reagem à norma pública, exactamente com o mesmo (des)respeito que essa norma pública manifesta por eles. A atitude não será desculpável…» 1
A estas linhas vem também a propósito o facto de a CML ter recentemente pintado nas faixas laterais da Av. da Liberdade, e transversais circundantes, novas marcações no asfalto. O caso - verídico - seria meritório, se quase não fosse anedota, senão mesmo por vezes trágico para os peões…
- Já sabes que a CML andou a fazer pinturas no asfalto das ruas…?
- Ena, novas zebras! Já não era sem tempo. Até que enfim. Finalmente uma promessa eleitoral foi cumprida.
- Zebras? Mas quem falou em passadeiras?
- ??
- Não se trata de medidas de segurança para os peões no atravessamento da via pública. A CML procedeu sim foi à pintura longitudinal dos lugares de estacionamento. É que assim sempre vão entrando mais umas moedinhas para os cofres da EMEL…
- Já sabes que a CML andou a fazer pinturas no asfalto das ruas…?
- Ena, novas zebras! Já não era sem tempo. Até que enfim. Finalmente uma promessa eleitoral foi cumprida.
- Zebras? Mas quem falou em passadeiras?
- ??
- Não se trata de medidas de segurança para os peões no atravessamento da via pública. A CML procedeu sim foi à pintura longitudinal dos lugares de estacionamento. É que assim sempre vão entrando mais umas moedinhas para os cofres da EMEL…
1. Ler J. V. Malheiros IN Público 2008-08-12, p. 33
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