24/08/2009

Conhecer a proto-história de Lisboa

«Com raras excepções, o cidadão de Lisboa não conhece nem a natureza nem a história do chão que pisa e no qual assentam as fundações do prédio onde vive.
Que sabe ele da sua história para trás do dia em que o malogrado Martim Moniz ficou entalado entre as portas do Castelo? Sabe, de facto, muito pouco. Mas ainda sabe menos de tudo o que aqui aconteceu antes de o primeiro humano ter pisado estas terras, milhares de anos atrás, e do que se passou nesta região há milhões de anos.
Não sabe que o calcário usado na construção dos Jerónimos e da maior parte da cantaria local nasceu num mar muito pouco profundo, de águas mais quentes do que as que hoje banham as nossas praias no pino do Verão.
Nesse mar raso, há cerca de 95 milhões de anos, populações imensas de moluscos com conchas mais espessas do que as das ostras cobriram os fundos e, proliferando umas sobre as outras, edificaram, camada após camada, os estratos de calcário que ainda podemos ver em vários pontos da cidade.
A maioria dos seus habitantes também não sabe que a pedra negra das velhas calçadas da cidade é basalto, ou seja, lava consolidada de vulcões que aqui estiveram em grande actividade há uns 70 milhões de anos. Não se dão conta de que o mar aqui regressou depois, há cerca de 23 milhões de anos, e que aqui se gerou, de novo, um ambiente construtor de calcário.
Por último, não lhes ocorre que as diversas fábricas de cerâmica, hoje desactivadas ou demolidas, que aqui moldaram o barro extraído dos próprios locais, só existiram porque esse mar recuou e passou a haver nesta região, há pouco mais de uma dezena de milhões de anos, uma paisagem aplanada, vestibular de um grande rio, povoada por mastodontes (grandes herbívoros ancestrais dos elefantes), grandes crocodilos e muitos outros animais entretanto extintos, cujas ossadas desenterradas dos respectivos sedimentos são objecto de estudo dos paleontólogos.
Páginas desta história, milagrosamente conservadas na densa malha urbana, são visíveis em alguns raros afloramentos rochosos nas ruas da capital. Porque escaparam ao camartelo ou porque não foram encobertos pelo betão ou pelo asfalto, são testemunhos valiosos que aqui nos ficaram desses tempos antigos.
À semelhança de um qualquer património construído, aceite como um monumento, também certas ocorrências geológicas devem ser entendidas como tal e, assim, merecer-nos a atenção e o cuidado de os legarmos aos vindouros como documentos de um património natural que a civilização, o progresso e, também, a ignorância foram destruindo ou soterrando».

Ler Galopim de Carvalho IN
http://dn.sapo.pt/inicio/ciencia/interior.aspx?content_id=1342134

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